RPD |
Revista Produção e Desenvolvimento Research in Production and Development
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eISSN: 2446-9580 Doi: https://doi.org/10.32358/rpd.2021.v7.556 |
CIDADE E LITERATURA: APROXIMAÇÕES E LEITURAS
Manoela Massuchetto Jazar1, https://orcid.org/0000-0002-7627-8346, manoelamj.arq@gmail.com
1 Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 80215-901, Curitiba – PR, Brasil
Submitted: 31/07/2021. Accepted: 28/09/2021
Published: 29/09/2021
RESUMO
Objetivo: Este artigo se propõe a discutir o processo de circulação de ideias sobre as cidades, evidenciando a importância da interdisciplinaridade para relevante compreensão das experiências e complexidades urbanas. Mais especificamente, interessa-se por analisar de que forma narrativas literárias podem auxiliar no processo de entendimento da história e do contexto cultural urbano a partir de um filtro tripartite de representação, interpretação e apropriação da realidade e do discurso. Metodologia: O debate está dividido em dois momentos principais; o primeiro diz respeito à intenção de um autor ao representar uma determinada realidade urbana, e o segundo se interessa pela propagação do texto entre diferentes tipos de leitores. Resultados: Apresenta que a intencionalidade da escrita e a apreensão de sua mensagem podem influenciar também em percepções e posturas acerca das cidades, sua espacialidade e sua gestão. Contribuição para o conhecimento: Tal raciocínio destaca a importância de serem ponderadas as parcialidades da produção do texto e de sua leitura, considerando subjetividades e contextualizações do autor, da obra e do leitor num processo em que ideias são assimiladas, propagadas e transformadas entre diferentes cenários.
PALAVRAS-CHAVE: literatura e cidade, circulação de ideias, história cultural urbana.
CITY AND LITERATURE: APPROACHES AND READINGS
ABSTRACT
Purpose: This article discusses the circulation of ideas about cities, highlighting the interdisciplinarity as a relevant way to understand urban experiences and complexities. More specifically, we are interested in how literary narratives can help us to read the urban history and the urban cultural context from a tripartite filter composed by representation, interpretation and appropriation of reality and discourse. Methodology: This debate is divided into two main moments; the first concerns an author's intention to represent a certain urban reality, and the second is interested in the propagation of the text among different types of readers. Results: It shows that the writing, it’s intention and the apprehension of its message can also influence perceptions and attitudes about cities, their spatiality, and their management. Contribution: We emphasize the value of considering partialities of literature (in writing and reading it), considering subjectivities and contexts of the author, its work, and the reader in a process in which ideas are assimilated, propagated, and transformed between different scenarios.
KEYWORDS: literature and city, circulation of ideas, urban cultural history.
Por sua realidade complexa e dinâmica, a cidade ganha inteligibilidade quando considerada em suas múltiplas dimensões territoriais, econômicas, políticas, sociais e culturais (Sposito e Sposito, 2020; Feitosa e Aranha, 2020; Castro e Reschilian, 2020; Paquette Vassalli, 2020; Cantarim e Ultramari, 2021). Uma das formas de se abordar tais complexidades urbanas é valendo-se de narrativas literárias como uma ferramenta complementar de análise e historização desses espaços. A literatura assume o papel de um elemento provocador de discussões relativas às cidades e seus fragmentos (sociais, espaciais, políticos, administrativos etc.), tornando-se um meio importante de reflexão, mesmo que pautado pela subjetividade da ficção (Jazar, 2020). Diante disso, este ensaio busca compreender de que forma narrativas literárias podem auxiliar no processo de entendimento da história e do contexto cultural urbano a partir de um filtro tripartite de representação, interpretação e apropriação da realidade e do discurso.
Nesse sentido, Tavolari (2021) destaca que:
[...] a cidade não é uma entidade com fronteiras bem delimitadas, apreensível como unidade ou como um corpo. A cidade é de difícil apreensão, e a maioria das metáforas aponta nesse sentido, ao remeter a imagens fragmentadas, com várias camadas e modos de funcionamento.
Na consolidação da relação entre literatura e cidades, empregam-se dois conceitos importantes, o da circulação de ideias e o da interdisciplinaridade. Nessa perspectiva, entende-se que ideias se distinguem social, política, técnica, econômica e culturalmente num contexto ampliado, e contribuem para que determinados períodos da história urbana constituam conjuntos difusores de princípios, conceitos, diretrizes e mesmo desejos (Ultramari e Duarte, 2012). A circulação de ideias, por sua vez, ocorre por meio de um caráter fluido e interdisciplinar; trata-se de um "processo em que ideias conformadas em determinado tempo e lugar são usadas no desenvolvimento de novas ideias em outro lugar a outro tempo" (Jazar, 2015, p. 58).
Para alguns autores dos campos da gestão urbana e políticas públicas, como Leme (1999), Dolowitz e Marsh (1996, 2000), Howlett e Morgan (2001), e Scazzieri e Simili (2008), o processo de circulação de ideias em espaços urbanos pode se manifestar mais frequentemente a partir de diferentes contextos temporais, espaciais e culturais. Contudo, destaca-se que as ideias podem circular ainda entre diferentes contextos disciplinares, uma vez que sofrem adaptações, interferências e sobreposições a partir de leituras transversais de conhecimento (Coimbra, 2000; Llosa, 2009).
Ao trabalhar no limiar, através ou além das fronteiras disciplinares, potencializam-se estratégias de construção e intercâmbio de saberes e pensamentos (Tabulawa, 2017; Garcia-Madurga et al., 2020; Molina e Colombo, 2021). Sendo o espaço urbano um elemento dinâmico, heterogêneo e multidisciplinar, seu estudo exige a combinação de diversos pontos de vista que auxiliem na sua compreensão. Ainda que a abordagem interdisciplinar não seja novidade no âmbito da cidade, debruçar-se sobre as trocas de contribuições entre diferentes campos possibilita a construção de múltiplos sentidos da experiência urbana. Nesse sentido, entende-se que a Literatura expressa um caminho apócrifo para se traduzir a urbanidade em suas múltiplas dimensões.
Reconhece-se uma dificuldade de se encapsular no texto a vida na cidade; um autor, mesmo atento ao contexto urbano em que está inserido, cria mitos sobre esse espaço, agregando informações simbólicas sobre a realidade, distanciando-se do que é verdadeiramente real. Esses mitos, enganosos ou fractais, podem revelar idealizações diversas e sujeições entre grupos sociais de uma cidade e de uma época, mas, mais que isso, podem suscitar questões importantes sobre processos e fenômenos urbanos.
Este ensaio compõe uma tentativa de entender como se estabelecem as relações entre cidades e narrativas literárias, em quais aspectos esses objetos são influenciados e influenciadores, e em que proporção a subjetividade crítica da literatura pode ser apropriada no contexto urbano. Parte-se do pressuposto de que a conexão entre literatura e cidade é uma condição irrefutável a partir do momento em que a produção literária moderna se torna indissociável da experiência urbana, principalmente devido às grandes transformações experimentadas nos últimos séculos. Textos literários, dessa forma, refletem as transformações urbanas e a consequente modernização do espaço, entendendo as cidades não apenas como um cenário, mas também como verdadeiros protagonistas históricos.
Essa profícua possibilidade de discussão – abordada em iniciativas anteriores de pesquisa (vide Ultramari e Jazar, 2021a; 2021b; Jazar, 2020a) – é aqui dividida em dois momentos principais. O primeiro diz respeito à intenção de um autor ao representar uma determinada realidade urbana transpondo-a para um texto a partir e critérios da verossimilhança. O segundo vai além, e discorre sobre quando o texto é propagado entre diferentes tipos de leitores, e “o/a autor/a sabe que será interpretado/a não segundo suas intenções, mas de acordo com uma complexa estratégia de interações que também envolve os leitores” ECO ([1993] 2005, p. 79-80).
Como é possível perceber, trata-se de um debate com caráter documental e historiográfico sobre as dimensões culturais e simbólicas de produção e consumo da cidade, incidindo sobre as representações da memória e da história urbanas. São resgatados trabalhos de pesquisadores do campo da Literatura, como Auerbach (1946), Barthes (1984), Candido (2000), Eco (1962, 1990, 1993), dentre outros. Ainda, aprofundam-se debates que já foram iniciados por outros estudiosos que relacionaram a Literatura com outras áreas de estudo, como a História, a Geografia e o Urbanismo; é o caso de Aínsa (2003), Francastel (1997), Gomes (1994), Olmos (2002, 2013), Pesavento (1995, 1999, 2004, 2006), Bailly (2021), entre outros.
O século XX marca a subjetividade na representação do espaço urbano; o período foi notabilizado por transformações e avanços diversos consolida a cidade como palco das experiências humanas. A arte e a literatura emergem como reflexos de um contexto influenciado pelo crescimento urbano e pelo advento do automóvel, até então, símbolo máximo da sociedade moderna. No campo dos estudos literários, Gomes (1999, p. 26) comenta:
Modernidade e experiência urbana formam um binômio de dupla implicação. A cidade, assim, constitui uma questão fundamental para os modernos; tornou-se uma paisagem inevitável, polo de atração e de repúdio, paradoxalmente uma utopia e um inferno. Foi traço forte na pauta das vanguardas históricas do início do século XX, e continua, neste final de século, a ser um problema, objeto do debate pós-moderno, num momento em que a era das cidades ideais caiu por terra. A modernidade elegeu o futuro como tempo privilegiado e identificou-se com a mudança, assimilando-a ao progresso. Nesta ótica, a cidade [...] foi pensada como lugar e objeto dessa mudança e seria resultado de um ideal de perfeição e do desenvolvimento tecnológico (grifos nossos).
Com esse destaque dado às cidades, o compromisso social da escrita ganha força, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, com o modernismo, em que se experimentou o auge do engajamento político, religioso e social no campo da cultura. Segundo Antônio Candido (2000, p. 182), “mesmo os que não se definiam explicitamente, e até os que não tinham consciência clara do fato, manifestaram na sua obra esse tipo de inserção ideológica, que dá contorno especial à fisionomia do período”.
A percepção sobre os problemas urbanos e o engajamento intelectual e crítico na literatura permanecem atuais. A literatura como forma de expressão da arte é um sistema cultural que só pode ser compreendida quando considerado o contexto em que é produzida, por meio uma “análise política, estética, histórica ou sociológica” (Geertz, [1997] 2004, p. 271). No mesmo sentido, Eco ([1962] 2016) defende que uma obra de arte não tem valor absoluto, podendo variar de significado segundo o contexto histórico em que se realiza.
A literatura, pois, dá “pistas” sobre o enquadramento em que foi escrita e, mais do que isso, permite compreender qual a influência desse contexto. A articulação de memória-narrativa-história permite afirmar que a cidade narrada não é igual à cidade concreta, e parece relevante compreender de que forma e por quais motivos essa distorção da “realidade” ocorre. O elemento inicial da análise passa a ser o contexto do escritor e o papel que ele ocupa – ou opta – no momento da escrita.
A intencionalidade de um texto, cunhada aberta ou dissimuladamente, revela o autor; de modo semelhante, a projeção do real por parte desse autor revela significados e significâncias da cidade. Para o que se busca discutir neste momento, considera-se que o “lugar de fala” de um autor no espaço urbano é o primeiro definidor do tom dado à sua forma de representação da cidade.
Leitura e interpretação de obras literárias, mais do que se constituírem como fontes profusas que auxiliam a compreensão das relações sociais e culturais no espaço urbano, transpõem divisas espaciais, sociais, temporais, culturais, políticas e ideológicas. Padrões de escrita, pautados pela verossimilhança – e não necessariamente pela verdade –, permitem que sejam buscados no texto literário aspectos históricos e historiográficos, significados e significâncias de um tempo e um espaço. Isso porque, em essência, “a ficção não seria [...] o avesso do real, mas uma outra forma de captá-lo” (Pesavento, 1995, p. 117).
O intelectual-literato, em suas narrativas, cenariza as transformações das cidades, ora documentando e testemunhando processos factuais, ora reinventando a realidade. O autor e, portanto, a obra literária, convidam seu intérprete a refletir sobre a vida em sociedade e as relações humanas na cidade. É nesse sentido que a construção literária permite que o leitor seja transportado para o lugar e a atmosfera desejados pelo autor, ou seja, é ele quem conduz parcialmente a interpretação, baseado em seus desejos e ideologias. Quanto às relações entre autor-obra-leitor é inevitável recorrer aos estudos de Eco ([1993] 2005, p. 29), que destaca:
Poderíamos objetar que a única alternativa a uma teoria radical da interpretação voltada para o leitor é aquela celebrada pelos que dizem que a única interpretação válida tem por objetivo descobrir a intenção original do autor. [...] entre a intenção do autor [...] e a intenção do intérprete que (para citar Richard Rorty) simplesmente “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” existe uma terceira possibilidade. Existe a intenção do texto (grifo nosso).
A intenção do texto, segundo Eco ([1993] 2005, p. 75), é produzida para um leitor capaz de fazer conjeturas sobre esse texto, indo além da palavra; Santos (2007, p. 97) esclarece com a afirmação de que “o texto postula, assim, uma competência gramatical por parte do destinatário”. O leitor-modelo de Eco “consiste em imaginar um autor modelo que não é empírico e que, no fim, coincide com a intenção do texto” (Eco, [1993] 2005, p. 75). Tem-se, pois, que uma narrativa literária não se compromete, obrigatoriamente, a representar fidedignamente a realidade, tampouco a ofertar uma imagem acabada dela. A literatura revela, remodela, camufla e/ou suprime diferentes temáticas vinculadas ao urbano, tendo a subjetividade e a intencionalidade como características intrínsecas a esse processo. Bailly (2021, p. 38) estabelece uma metáfora interessante nesse sentido:
Uma cidade é uma língua, um sotaque. […] A cidade: esta onde moro, onde nasci, aquelas que visitei e revisitei, aquelas que não conheço. Línguas faladas, portanto, e línguas desconhecidas, mas a cada vez, quaisquer que sejam o volume do léxico e aforma da sintaxe, uma língua – com seu caráter próprio, com a singularidade de seus afetos, e com tudo o que faz dela uma língua, um conjunto de signos em reserve na memória de um povo e que cada um articula, anima, locuta, oculta à sua maneira.
Apesar de se reconhecer que nem toda obra literária contém informações prioritariamente voltadas à descrição, construção, gerenciamento ou utilização do espaço das cidades, é possível compreender a partir da literatura elementos da experiência urbana que induzem a apropriação direta de ideias e ideologias diversas em práticas administrativas ou de governo. É nesse sentido, baseando-se na visão historiográfica e literária, mas com interesse voltado à cidade, que se reconhece a materialidade urbana traduzida no texto literário. A leitura se mostra viável a partir da evocação de conflitos, acontecimentos e protagonistas urbanos que nem sempre são destacados na História. O intelectual engajado, assim, se posiciona criticamente quanto à realidade urbana ao retratar, por exemplo, violência, solidão, ausência de valores morais, falta de empatia etc; o leitor, por sua vez, ressignifica essas informações num novo contexto, a partir de suas experiências e idealizações.
Se a cidade narrada não é igual à cidade concreta, tampouco é igual à cidade interpretada. Nesse sentido, Gomes (1994, p. 24) aponta que “o texto é o relato sensível das formas de ver a cidade; não enquanto mera descrição física, mas como cidade simbólica, que cruza lugar e metáfora, [...] tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas”. Para entender o texto literário enquanto registro e materialização de fragmentos da história urbana, deve-se discutir quais fatores são responsáveis pelas diferenças entre o narrado e o interpretado, e ainda entre aquilo que posteriormente pode ser apropriado de uma narrativa em relação ao espaço urbano.
Destaca-se que, por meio da proximidade entre verossimilhança e credibilidade (Pesavento, 2004), a narrativa literária procurou ser cada vez mais realista na representação dos fatos, aproximando-se do discurso histórico; o verdadeiro e o plausível passaram a ser confundidos (Aínsa, 2003). Relacionar realidade e ficção, assim, se torna uma atividade complexa, pois depende da forma como o entorno é apropriado pela palavra para torná-lo inteligível.
A palavra literária se relaciona com o imaginário a partir da representação de “retalhos do concreto”; são os fragmentos da experiência urbana que, quando articulados, produzem uma alegoria acerca da cidade. Mário de Andrade ([1940] 1993, pp. 170-171) substancializa essa perspectiva ao falar sobre a experiência de conhecer um lugar – no caso específico do autor, a cidade de Paris:
É a nossa inteligência, a nossa cultura e especialmente a nossa sensibilidade que, reagindo sobre dados menos didáticos e mais reais que uma descrição ou crítica, por exemplo, uma fotografia, um telegrama de jornal, um suspensório, um livro, um perfume, um selo de correio, e milhares de outros retalhos do concreto, até mesmo uma carta geográfica, provocam esse conhecimento sensível, que é a nossa própria realidade. Pode ela estar afastadíssima do real verdadeiro, nós jamais a abandonaremos nem mesmo depois de confrontada com a realidade. Para nós ela será sempre o real mais verdadeiro (grifos nossos).
Delimita-se, assim, o discurso literário, que claramente não corresponde a um registo, uma imitação ou uma duplicação do real, e sim a uma construção que supõe uma sintaxe de fragmentos de experiências. Há uma consciência sobre o caráter fragmentário da realidade e sobre a impossibilidade de perspectivas totalizantes ao se pensar o espaço urbano, e isso significa que há uma distância entre real e imaginário (Olmos, 2013). De fato, isso ocorre porque da escrita não surgem apenas o real e o imaginário, mas sim três elementos: o percebido, o real e o imaginário (Francastel, 1997).
A produção literária deve ser entendida como um processo histórico, político e filosófico, individual e social a um só tempo. A realidade “transcende o texto para assumir o discurso, que conta, minimamente, com as dimensões do enunciador, do enunciado e do enunciatário” (Ribeiro, 2000, p. 97, grifos do autor). Para o que interessa à discussão, o “pacto narrativo” entre autor, texto e leitor relaciona realidade urbana e texto literário a partir de três filtros: representação, interpretação e apropriação.
O filtro da representação é aquele que traduz o real para o ficcional por meio da escrita. Aqui, o autor é considerado principal agente, uma vez que cabe a ele absorver as informações relativas à cidade e interpretá-las, transmitindo sua experiência urbana no texto. O papel do autor nesse processo, como já apontado, não se dá de forma neutra; no processo da escrita, “a emotividade filtra a visão do eu que tanta recuperar pela memória as suas vivências e abdica da possibilidade de totalização” (Gomes, 1994, p. 29). A obra passa a fornecer um “retrato” de um espaço-tempo específico que irá servir como caminho para a compreensão, análise e interpretação de uma determinada época e sociedade, expondo impasses urbanos e humanos, propondo uma reelaboração da memória coletiva e individual (Pesavento, 1995).
O efeito da representação faz com que o elemento isolado, o caco, o traço, o detalhe seja tomado como expressão do conjunto comparável a uma situação desejada. Assim, não importa que a Rua do Ouvidor fosse quase um beco ou que a avenida Central não tivesse a pompa e a dimensão da parisiense Champ Elysées, pois a sensação de viver em uma metrópole dava sentido à existência. Ora, sendo o imaginário social forma de representação do mundo, ele se legitima pela crença e não pela autenticidade ou comprovação (Pesavento, 1999, p. 161, grifo nosso).
Além disso, Santos (2007, p. 98), baseado em Eco (1983), destaca que de alguma forma os textos preveem seus leitores-modelos de diversos modos: “a escolha de uma língua, de um tipo de enciclopédia, de um dado patrimônio lexical e estilístico, sinais de gênero que selecionam a audiência, restrição do campo geográfico, etc.”. O autor, pois, direciona e encaminha o texto para que seja construído em conjunto com o leitor. Barthes (2004, p. 5) aponta que, no processo de escrita, “o Outro está sempre presente, sob a figura anônima do leitor”; assim, o autor é responsável pela imagem que quer passar ao público, a partir de dados e de argumentos que constituem um espaço proposições e posições.
O processo de leitura, assim como a escrita, não é imparcial; o leitor ressignifica o encontro entre realidade e ficção de acordo com seu contexto e suas circunstâncias. É nesse momento que surge o segundo filtro que interessa a este debate: a interpretação – sensível e intangível – da obra literária. Consiste num esforço em explicar “por que essas palavras podem fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são interpretadas” (Barthes, 2004, p. 6). Conforme teria dito o filósofo Michel de Montaigne, ainda no século XVI, “a palavra é metade de quem fala, metade de quem a ouve” (Montaigne, [1595] 1987).
Santos (2007, p. 96) aponta que “durante muito tempo reinou na Crítica Literária a ideia de que um texto literário era a expressão das ideias de seu autor. Estudar a obra só teria sentido se estudássemos também a biografia de seu autor”. O sociólogo e semiólogo Roland Barthes critica essa tendência de se considerar a identidade de quem escreve como base do significado de uma obra; o escritor existe para produzir e não explicar a obra. Uma vez que a ideia é transmitida pela literatura e sua versão da realidade é representada por meio de narrativas, minimiza-se a existência do autor, e o leitor/intérprete ganha força: “um texto, depois de separado de seu autor [...] e das circunstâncias concretas de sua criação [...], flutua [...] no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis” (ECO, [1993] 2005, p. 48). Para Barthes ([1984] 2012), as multiplicidades do texto convergem no leitor.
Há aqui uma construção dialética da percepção do espaço pela vivência de outra pessoa, neste caso por meio da literatura. Essa percepção, no entanto, vai além de um mero aceno do leitor à ideia de um autor, pois, além de poder tentar desvendar as intenções do autor, o intérprete deve se comprometer à ressignificar o texto. A leitura pode ser maliciosa, mas a interpretação exige sempre um limite legítimo ou legitimável (Eco, 1990, grifos nossos); “usar livremente um texto tem a ver com a decisão de ampliar o universo do discurso” (Santos, 2007, p. 100). Santos (2007, p. 99), apoiado em Eco (1990), esclarece que um texto aberto permite infinitas considerações, ou seja, “o autor decide até que ponto deve controlar a cooperação do leitor, para onde esta é dirigida, abrindo-se para inúmeras possibilidades interpretativas [...]”.
O intérprete, portanto, deve estabelecer continuamente relações entre o conteúdo absorvido e suas intenções pessoais, empenhando-se em revelar aspectos intangíveis da linguagem – circunstâncias, opiniões, posicionamentos e ideias. Estando, no cenário de interesse deste artigo, o intérprete inserido no universo da gestão e planejamento urbano, a forma como uma cidade é assimilada a partir de obras literárias se diferencia daquela interpretação estabelecida por alguém do domínio literário ou campos afins. Gomes (1994, p. 24), nesse sentido, destaca que “[...] a leitura se dá por aproximações, tentativas, rascunhos. A cidade construída pelo discurso possibilita visões diversas, leituras e interpretações que dependem do leitor”.
Este debate é traduzido na constatação de que a experiência e a prática do espaço da cidade pelo autor e pelo leitor são fundamentais para a construção e a transferência da ideia por meio da narrativa: “o narrado é o elemento organizador de todos os outros componentes, o intermediário entre o narrado (a história) e o autor, entre o narrado e o leitor” (Gancho, 2002, p. 11).
O papel do autor se torna relevante na interpretação de um texto fundamentalmente quando ajuda a entender o processo de criação da escrita. A relação autor-texto-leitor pressupõe, pois, entender as circunstâncias da produção e análise textual, atribuindo sentido a uma determinada temática, discurso ou acontecimento narrativo, e permitindo que sejam assimiladas suas motivações, interesses, emoções etc. Essa contextualização, pois, abrange todos os níveis de relação entre atores envolvidos no processo, e alguns aspectos são identificados como prioritários para compreender os filtros da representação e interpretação.
Para o escritor, deve se levar em consideração sua biografia, seus engajamentos e ideologias assumidos, o propósito da sua escrita, seus pares literários, o contexto temporal em que vive/viveu, e o contexto urbano em que está/esteve inserido – incluindo circunstâncias sociais, econômicas, políticas e culturais. Já no que tange a obra literária, fonte transmissora de ideias, avaliam-se as temáticas nela abordadas, os objetivos assumidos no texto, os posicionamentos do autor revelados (explícita ou implicitamente), o contexto temporal e urbano em que foi produzida – também incluindo circunstâncias sociais, econômicas, políticas e culturais – e o contexto urbano representado no enredo, seja relacionado descrições espaciais, transformações urbanas, práticas ou políticas de gestão. Na outra extremidade, onde se encontra o intérprete, são constatados aspectos relacionados ao propósito de leitura, às ideologias que filtram a interpretação da obra (engajamentos e ideologias assumidos pelo leitor), e ao contexto temporal da análise da obra.
Ainda que para o leitor tenham sido identificadas e elencadas menos variáveis circunstanciais, é nele que esta discussão está focada. Isso ocorre porque dele depende o terceiro filtro da relação entre realidade urbana e narrativa literária: a apropriação de discursos. Segundo aquilo que é defendido por Barthes ([1988] 2012), o leitor tem papel fundamental na produção do sentido do texto e, por isso, salienta-se que um texto literário não pode ser analisado somente como expressão das ideias de seu autor e tampouco pode estar limitado ao estudo dessa biografia.
Uma vez interpretado, o texto pode ser apropriado e convertido na voz do leitor, que também tem o que dizer ou mostrar; a partir de interpretações, uma ideia transmitida por um autor para uma obra literária é assimilada, adaptada e apossada por discurso distintos daqueles eventualmente pretendidos no momento da escrita. Essa apropriação, de fato, ressignifica mais uma vez a narrativa, intencionalmente direcionando preocupações, temáticas, objetivos e discursos. Eco ([1993] 2005, p. 79-80) legitima esse posicionamento ao afirmar que:
Quando um texto é colocado numa garrafa [...], isto é, quando um texto é produzido não para um único destinatário, mas para uma comunidade de leitores, o/a autor/a sabe que será interpretado/a não segundo suas intenções, mas de acordo com uma complexa estratégia de interações que também envolve os leitores, ao lado de sua competência na linguagem enquanto tesouro social (grifo nosso).
Na apropriação, os contextos de significância permitem uma série de desvios de leitura, dependendo menos das circunstâncias de representação, e mais da conjuntura da interpretação; aqui a subjetividade é maior (Eco, [1962] 2016). Interpretação e apropriação de ideias, portanto, são ações vinculadas ao entendimento do mundo daqueles que interpretam e apropriam, ou seja, há infindas maneiras de interpretar e apropriar uma mesma informação/ideia.
Uma cidade comporta várias cidades, havendo, sem dúvida, subjetividade, imaginação criadora e percepção pessoal dos indivíduos que vivem na urbe. Entretanto, apesar de contar com esta "cidade de cada um", a identidade urbana pressupõe uma percepção mais geral, socialmente sancionada e que é fruto do imaginário coletivo (Pesavento, 1995).
Seja como for a cidade construída pelo autor, ela pode ser convenientemente adotada ou maquiada por um político ou gestor, ou comodamente aproveitada para atribuir críticas à gestão e administração urbana. Deve-se demonstrar, portanto, que a cidade descrita é potencialmente falsa para comprovar que a cidade apropriada é intrinsecamente distante daquela sobre a qual um discurso é feito.
A abertura do texto é preenchida a partir dos interesses do leitor e, nesse sentido, “must also assume that it is possible to reach an agreement, if not about the meanings that a text encourages, at least about those the text discourages” (Eco, 1990, p. 45 apud Wirth, 2001). A apropriação dos elementos literários também é fragmentada e se revela de acordo com os interesses e ideologias daquele que interpreta e assimila a obra. No que se propõe a discutir nesta pesquisa, entende-se que ainda mais importante do que a cidade construída pelo autor, é aquela que pode ser adotada ou maquiada por um discurso político ou gestor. Nesse sentido, Auerbach ([1946] 1971, p. 488) orienta que “o método de interpretação de textos deixa à discrição do intérprete um certo campo de ação: pode escolher e colocar os acentos do modo que preferir. Contudo, aquilo que afirma deve ser encontrável no texto” (grifo nosso).
A representação da cidade pressupõe o uso de jogos de significação que outorgam sentido à sua concretude. A ideia sobre realidade assimilada pelo autor é traduzida pela linguagem escrita, e passa a ser decodificado pelo interlocutor/ leitor; a mensagem pode ser compreendida (ou não) no final desse processo. As visões de autor e intérprete são, pois, complementares, e não excludentes. Conclui-se desse raciocínio que, mesmo que as apropriações da literatura sejam indevidas – ou, ao menos, questionáveis – para os estudos urbanos, não podem ser consideradas infundadas. A interpretação e apropriação podem revelar elementos sobre o espaço urbano e sua gestão, consolidando a leitura como fonte transmissora na forma de descrever, expor, narrar e pensar a vivência na cidade.
Reconhece-se na literatura uma das formas possíveis de se observar a realidade, consolidando um amplo campo de debate sobre as subjetividades do espaço urbano. A concepção de uma cidade apresentada em textos literários revelaria, então, multiplicidades da vida urbana que dificilmente podem ser dimensionadas em métodos técnicos qualitativos e quantitativos convencionais. A análise de obras literárias propõe um universo pouco explorado sobre a realidade do espaço urbano e de sua gestão: o da percepção (Olmos, 2002); mesmo com fronteiras difusas e áreas de sobreposição, a percepção possível – do autor e do leitor – e a realidade podem ser complementares. As narrativas literárias são, portanto, fontes que sintetizam e tornam tangíveis aspectos culturais e humanizadores do espaço urbano.
Ao analisar essa fonte para fins de estudos e gestão urbana, decodifica-se uma realidade discursiva como percepção abstrata do mundo que, mesmo sem conter verdades absolutas, permite questionar aquilo que é entendido como real. A representação, pois, está pautada pela verossimilhança, que explora a realidade, somando-a aos planos da imaginação e/ou das lembranças. Ingredientes literários potencialmente apresentam personagens e cenários, fatos e conflitos a partir da visão de um autor, e potencializar as possibilidades oferecidas ao leitor para percebê-los.
Obras literárias podem conter críticas sociais, culturais e políticas, e indicar organizações e atributos do espaço, simbólicos ou não. Essas características permitem que sejam compreendidas, à época de cada publicação, as maiores preocupações urbanas por parte da população, segundo prioridades de um autor, e as práticas de gestão e planejamento que mais impactaram na vida dos personagens.
Ficam delimitados, assim, três momentos que compõem a relação entre ficção e realidade, entre literatura e cidade: a representação de uma realidade urbana no texto, a interpretação desse conteúdo, e a apropriação da ideia literária no contexto da cidade. Um escritor pode, mesmo que implicitamente, indicar posicionamentos críticos diante da sociedade, de práticas políticas, estratégias administrativas e decisões de planejamento urbano. O leitor-intérprete se dedica a entender e absorver aquilo que lhe interessa dessa representação, mantendo ou descartando, possíveis propósitos do autor. Ao analisar a manutenção ou perda desse intuito discursivo, identifica-se uma capacidade de apreensão direta ou indireta das ideias literárias.
O fato de a fonte literária ser considerada “somente” complementar não diminui sua importância ou relevância investigativa, pois não são negados ou minimizados seus riscos e restrições. Reconhece-se nessa fonte literária as mesmas limitações observadas em fontes técnicas de estudo e gestão da cidade, sujeitas a subjetividades nas suas construções e leituras. Nos campos técnicos, entende-se que essas limitações ocorrem principalmente nos âmbitos ideológicos pessoais e circunstanciais de quem cria, de quem trata e de quem utiliza parâmetros, informações, leis e mapas. Com isso, se reforça a defesa inicial, já tomada como pressuposto no estudo e gestão da cidade, em relação à interdisciplinaridade, a qual buscaria a compreender complexidades urbanas pela conjunção complementar de campos de conhecimento diversos.
É necessário, então, reconhecer os limites da representação literária que podem ser relativizados por um intérprete – especialmente porque essa representação é concebida por meio de críticas, descrições, memórias e metáforas propostas por um escritor. A diversidade ideológica e política nesses discursos de representação e interpretação deve ser considerada a partir da análise sobre a heterogeneidade da trama textual, sua historicidade e a existência de autor e leitor como sujeitos sociais essenciais no processo de produção literária.
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DECLARATION OF CONTRIBUTIONS TO THE ARTICLE - CRediT
ROLE |
Manoela |
Conceptualization – Ideas; formulation or evolution of overarching research goals and aims. |
X |
Data curation – Management activities to annotate (produce metadata), scrub data and maintain research data (including software code, where it is necessary for interpreting the data itself) for initial use and later re-use. |
- |
Formal analysis – Application of statistical, mathematical, computational, or other formal techniques to analyze or synthesize study data. |
X |
Funding acquisition - Acquisition of the financial support for the project leading to this publication. |
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Investigation – Conducting a research and investigation process, specifically performing the experiments, or data/evidence collection. |
X |
Methodology – Development or design of methodology; creation of models. |
X |
Project administration – Management and coordination responsibility for the research activity planning and execution. |
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Resources – Provision of study materials, reagents, materials, patients, laboratory samples, animals, instrumentation, computing resources, or other analysis tools. |
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Software – Programming, software development; designing computer programs; implementation of the computer code and supporting algorithms; testing of existing code components. |
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Supervision – Oversight and leadership responsibility for the research activity planning and execution, including mentorship external to the core team. |
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Validation – Verification, whether as a part of the activity or separate, of the overall replication/reproducibility of results/experiments and other research outputs. |
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Visualization – Preparation, creation and/or presentation of the published work, specifically visualization/data presentation. |
X |
Writing – original draft – Preparation, creation and/or presentation of the published work, specifically writing the initial draft (including substantive translation). |
X |
Writing – review & editing – Preparation, creation and/or presentation of the published work by those from the original research group, specifically critical review, commentary or revision – including pre- or post-publication stages. |
X |