RPD

 

Revista Produção e Desenvolvimento

Research in Production and Development

 

eISSN: 2446-9580

Doi: https://doi.org/10.32358/rpd.2021.v7.546

 

 

PROPRIEDADE DA TERRA: UM CONCEITO EM DUAS LINHAS

 

Gislene Pereira1, https://orcid.org/0000-0003-0426-8314, gislenepereira42@gmail.com

 

1 Federal University of Paraná, 82200-070, Curitiba, PR, Brazil

 

Submitted: 20/07/2021. Accepted: 27/07/2021

Published: 29/09/2021

 

ABSTRACT

PurposeThe article intends to contribute to the discussion on the use of literature as a complementary reference for the study of property relations in Brazil. Metodology: Based on the content of a research report that builds the trajectory of the concept of property in the country, we developed an analysis of the book Torto Arado, by Itamar Vieira Junior, which narrates the life of a family in the backlands of Bahia. FindingsReading the two works together allowed us to identify points of convergence between the different historical moments of the concept of property and the times and events that took place in the lives of the protagonists of Torto Arado's sisters. Contribution to knowledge: The text contributes to broadening the debate on the limits and potential of the use of literary narrative to prove, and illustrate, historical facts.

 

KEYWORD: property rights; land ownership, literature, cultural references, torto arado

 

 

LAND PROPERTY: A CONCEPT IN TWO LINES

 

 

 

RESUMO

Objetivo: O trabalho pretende contribuir para a discussão sobre a utilização da literatura como referência complementar para o estudo das relações de propriedade no Brasil. Metodologia: A partir do conteúdo de relatório de pesquisa que constrói a trajetória do conceito de propriedade no país desenvolvemos uma análise do livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que narra a vida de uma família no sertão da Bahia. Resultados: A leitura dos dois trabalhos de forma associada permitiu identificar pontos de convergência entre os diversos momentos históricos do conceito de propriedade e os tempos e acontecimentos transcorridos na vida das irmãs protagonistas de Torto Arado. Contribuição para o conhecimento: O texto contribui para a ampliar o debate sobre limites e potencialidades do uso da narrativa literária para comprovar, e ilustrar, fatos históricos.

 

PALAVRAS-CHAVE: direito de propriedade, propriedade da terra, literatura, referências culturais, torto arado

 


 

1.    Notas introdutórias: literatura como tradução da realidade social

            Este trabalho faz parte de uma pesquisa anterior que aborda a trajetória do conceito de propriedade no Brasil (Pereira, 2021). Concluída a identificação da linha do tempo da propriedade, a autora passou a analisar outras variáveis que poderiam ser relacionadas a cada um dos recortes temporais identificados. Foi então que surgiu a proposta de articular dois mundos paralelos: o mundo dos fatos históricos reais (obtidos na pesquisa) e o mundo dos fatos ficcionais (obtidos por meio de obras literárias).

             Para a discussão proposta, tomamos como referência a afirmação de Castro (2018, p.07):

A relação entre a vida social e a literatura vem sendo explorada há muito, sendo a literatura matéria oscilante para os historiadores, que ora se aproximaram, ora se afastaram deste “produto humano” como uma fonte confiável, portadora de verdades históricas.

            O texto aqui apresentado consiste, portanto, em uma tentativa de comparar esses dois mundos (pesquisa acadêmica e literatura) em determinados pontos da linha do tempo desenhada, com o objetivo de identificar em obras literárias os diversos momentos históricos do conceito de propriedade. Conforme Pesavento (1995, p.117) para o historiador, a literatura é um documento ou fonte, mas o que se tira dela, na verdade, é a representação de uma situação. E, complementa, o estudo das representações abre “uma janela para a recuperação das formas de ver, sentir e expressar o real dos tempos passados”.

            É isso, justamente, que pretende esse texto, ao buscar na literatura novas fontes para comprovar, e ilustrar, fatos históricos. Sendo narrativa, entendemos que a literatura representa e explica a vida e é a partir deste conceito que nos propomos a encontrar pontos de convergência em duas fontes de história(s). O artigo pretende contribuir para a discussão sobre a utilização da literatura como referência complementar para o estudo das relações de propriedade no Brasil.

            A primeira delas consiste no relatório da pesquisa desenvolvida pela autora, na qual se desenha a trajetória do conceito de propriedade no Brasil (Pereira, 2021). A partir da identificação das Ordenações Filipinas como a origem histórica das normas legais que regem os direitos de propriedade no país, o referido trabalho fez um reconhecimento das permanências e transformações do conceito ao longo do tempo. A outra fonte é o livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Trata-se de uma narrativa ficcional, sobre a vida de uma família no sertão da Bahia. Apesar de ser ficção, o próprio autor afirma:  

...eu queria contar a história das personagens [protagonistas do livro], mas essa história não poderia estar desconectada de um contexto do mundo em que vivemos. Se elas estavam ali, no sertão da Bahia, se viviam numa fazenda onde seu trabalho era explorado, inevitavelmente essa história iria ser contada como tal. É difícil escrever um romance desconectado do nosso mundo. (VEIGA, E. Torto Arado reflete passado escravagista mal resolvido.15.03.2021. Disponível em: https://p.dw.com/p/3qXYj

            Assim, buscamos pontos em comum entre esses textos de naturezas diferentes, mas que tem em comum a questão do acesso à terra no Brasil. Para trabalhar a relação entre os dois trabalhos, partimos dos seguintes pressupostos: i) a propriedade é uma relação social e se transforma conforme também se transforma a sociedade; ii) a literatura expressa a sociedade e seu respectivo tempo histórico. Consideramos, portanto, que, se a propriedade muda conforme a sociedade e a literatura representa fatos e tempos sociais, então seria possível encontrar na literatura as características das relações de propriedade em diversos tempos históricos.

            O artigo inicia com uma síntese da trajetória da propriedade no Brasil, identificando as diferentes formas que assumiu a organização jurídica da relação entre as pessoas e a terra. A partir dessa identificação, especula-se sobre a sequência dessa trajetória, considerando-se, para isso, a realidade da sociedade urbana contemporânea. Na sequência, buscamos identificar no livro Torto Arado trechos que ilustrem a trajetória estudada, colocando os personagens como sujeitos que expressam nas suas vivências as relações sociais dominantes no seu tempo. Ao fazer a relação entre a história narrada em Torto Arado e o resultado da pesquisa acadêmica, pretendemos reforçar o uso do texto literário como fonte de confirmação de fatos históricos, ampliando as possibilidades de compreensão da realidade.

 

2. Trajetos Metodológicos: Propriedade - Um conceito que se transforma

A discussão aqui apresentada parte do reconhecimento do conceito de propriedade como elemento cuja análise permite compreender a sociedade que o define. Nesse contexto, consideramos que a propriedade é uma construção social, formalizada por normas e instituições jurídicas, presentes em todos os momentos da história.  Ou seja, o conceito e o conteúdo da propriedade estão sempre em transformação, porque também se transforma a sociedade que os define.

Coutinho, Prol e Miola (2018, p.13) fortalecem esse argumento ao afirmar que as formas que assume a propriedade “[...] traduzem escolhas passadas, perenizando arranjos distributivos, definindo e legitimando quem ganha e quem perde por meio de institutos jurídicos que regulam como se dá a aquisição, a transferência e a perda da propriedade e da posse”.

Seguindo a trajetória do direito de propriedade no Brasil, Pereira (2021) demonstra que até o início do século XIX a propriedade era definida pelo uso. De fato, no período colonial as relações de propriedade eram normatizadas pelo sistema de sesmarias, segundo o qual, o direito a permanecer na terra estava condicionado ao uso dela.  O sistema de sesmarias previa, inclusive, a possibilidade de retomada da terra pela Coroa Portuguesa no caso de o usuário não cumprir as exigências de exploração. Pereira (2021) ressalta Paes (2018, p. 42), que afirma que, nesse período e até meados do século XIX,  

A posse – e não a titulação individualizada da propriedade – era o centro dessas relações. A principal forma de reconhecimento de uma relação jurídica legítima entre uma pessoa e uma coisa era feita por meio da identificação do uso efetivo dessa coisa, mais do que por meio da existência de um título individual de concessão de propriedade. […]

O uso como definidor da relação de propriedade permaneceu no Brasil até a aprovação da Lei de Terras, em 1850, que confirmou a “compra” como única maneira de acesso à terra. A partir daí, desapareceu o uso como fundamento e o conceito de “direito de propriedade” dominante passou a ter como base a individualidade proprietária.

Durante todo o século XX até a atualidade o conceito de propriedade se manifestou em todo o corpo jurídico que normatiza a vida social, mantendo seu caráter individualista. Entretanto, desde a Constituição de 1934 (Pereira, 2021) algumas mudanças ocorreram no conceito; o texto constitucional definiu que o direito à propriedade, apesar de individual, não poderia contrapor-se ao interesse social ou coletivo. Ou seja, o uso da propriedade ficava condicionado ao bem-estar social.         As constituições seguintes mantiveram esse princípio até que na Constituição de 1967 apareceu pela primeira vez o termo “função social da propriedade”. Entretanto, como afirma Pereira (2021), referenciada em Silva (2010), a vinculação entre propriedade e função social foi consolidada somente com a Constituição Federal de 1988. E essa incorporação do princípio da função social na Constituição modificou a natureza do direito de propriedade, que não mais pode ser considerado como um direito individual, uma vez que passa a estar vinculado ao interesse coletivo. Na sequência temporal, a Lei Federal nº 10.257, de 2001, Estatuto da Cidade, regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, normatizando os princípios e as diretrizes nacionais da política urbana, o que significou, na prática, a operacionalização do conceito de função social da propriedade.

Seguindo a linha do tempo do conceito de propriedade, Pereira (2021) identifica na atualidade uma vertente de discussão que, enfatizando sua função social, aponta algumas possibilidades futuras para a propriedade. Essa perspectiva passaria pelo reconhecimento das formas concretas pelas quais a população mais pobre resolve seu problema de moradia em grande parte das cidades brasileiras. Significaria, assim, incorporar como legítimas as relações de uso da terra para fins de sobrevivência que, hoje, são consideradas “ilegais”, mas que predominam nas grandes cidades: as favelas, ocupações e outras denominações dos assentamentos populares precários. Ou seja, a legitimação dessas “relações de propriedade”, típicas das grandes cidades do mundo em desenvolvimento, parte do reconhecimento dos direitos de uso, aos quais se agregam experiências de gestão coletiva e, cada vez mais, tornam-se referência para uma transformação estrutural do espaço das cidades.

Para sintetizar essa trajetória do conceito de propriedade, apresentamos o Quadro 01 a seguir, que indica também o caminho escolhido para discutir a relação entre o texto literário e a realidade histórica.  

Quadro 01. Trajetória da conformação do conteúdo da propriedade fundiária no Brasil

 

PERÍODO

NORMAS

CONTEÚDO

Séc XVI  a

Séc XVIII

Ordenações Filipinas

Sesmarias como forma de acesso à terra

Extinção sesmarias

Séc. XIX

1822

 

Resoluções imperiais

1824

Constituição do Império

Delimitação antigas sesmarias

1850

Lei de terras

Legitima as posses existentes, mantendo como critério o cultivo efetivo

Compra como forma de acesso à terra

1891

Constituição República

Propriedade plena

 

 

 

Séc XX

 

 

 

1916

Código Civil

Propriedade, com respeito ao direito de vizinhança

1934

Constituição

Inserção do interesse coletivo como limite à propriedade

1937

Constituição Estado Novo

Possibilidade de desapropriação para fins de utilidade pública

1946

Constituição

Bem-estar social como limite à propriedade

Pós Estado Novo

1967

Constituição Período Militar

Função social da propriedade

1988

Constituição Cidadã

Propriedade como função social

Séc XXI

2001

Estatuto da Cidade

Operacionaliza a função social da propriedade

Fonte: Elaborado a partir de Pereira (2021)

 

           

É a partir dessa trajetória do conteúdo da propriedade no Brasil que passamos, na sequência, a analisar o livro Torto Arado, buscando identificar pontos de convergência entre as histórias de vida dos personagens e os tempos históricos. Concordamos com Pesavento (2006, s.p.), para quem, a literatura como narrativa (tanto como a história), “tem o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo”. Acreditamos, assim, que Torto Arado pode demonstrar as relações sociais que conformam o conceito de propriedade no recorte temporal da narrativa ou, como o autor coloca, pode negar essa realidade e construir uma outra versão, que ultrapasse o conceito inicial.

 

 

3.        A propriedade que a literatura revela

A história de Torto Arado transcorre no sertão da Bahia, na região da
Chapada Diamantina. Embora não esteja explícito no texto, deduzimos por referências diversas que se passa nas décadas de 1970/80. Em um artigo sobre Torto Arado, Tavares (2021, s.p.) comenta que o romance tem  

um propósito estreito de penetrar fundo no Brasil rural, adumbrando a miséria, a fome, a seca, até se deparar com um espelho d’água, que é o espanto e a amplitude do tempo, onde o passado reflete o passado para o passado, e o presente é a negação da evolução e do pensamento social, da liberdade dos homens.

De fato, a narrativa acompanha a vida de duas irmãs, Belonísia e Bibiana, filhas de Salustiana e Zeca Chapéu Grande, trabalhadores rurais e descendentes de escravos, assim como o são vários dos vizinhos e personagens da história. Como explica Belonísia:

“Meu pai havia nascido quase trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda cativo dos descendentes dos senhores de seus avós” Vieira Junior (2019, p. 164).

Toda a família trabalha na fazenda Água Negra, numa relação de dependência e exploração. Não são assalariados, sendo o pagamento pelo trabalho feito mediante a permissão para a família construir uma casa precária e fazer uma horta para cultivo próprio. Bibiana conta que o pai chamou um tio para vir morar na fazenda, repassando as seguintes informações:

“Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro” Vieira Junior (2019, p.41).

E a personagem complementa os argumentos do pai para convencer o cunhado:

“Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhe eram dadas” Vieira Junior (2019, p.41).

Em outra passagem:

“Podem trabalhar, mas a terra é dessa família por direito. Os donos da terra eram conhecidos desde a lei de terras do Império, não havia o que contestar” Vieira Junior (2019, p.183).

            O grupo de trabalhadores da vizinhança reconhecia que não tinha direitos sobre a terra. O livro narra uma situação em que os moradores reclamam que o patrão levara as batatas da roça, e, na sequência, comentam: “Mas a terra é deles. A gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo.” Vieira Junior (2019, p.45).

            Não existia, no grupo etário dos pais das protagonistas, a percepção de qualquer direito à terra por parte dos trabalhadores. A história de vida era comum a todos, passando pela expropriação desde os antepassados. Bibiana comenta que quando o pai foi até a fazenda Caxangá buscar a avó Donana para viver com eles, ela “já se encontrava sozinha na casa velha onde viveu... seus outros filhos haviam partido em busca de trabalho, cada um na sua vez” Vieira Junior (2019, p. 22). Ou seja, a trajetória das famílias era sempre a mesma: ficavam trabalhando na terra do patrão e alguns filhos saíam em busca de trabalho, recomeçando o mesmo ciclo em outro lugar.

            A apropriação por parte de quem tinha força era a essência do modo de acesso à terra no final do século XIX. Conforme Pereira (2021, p.06)

... na segunda metade do século XIX, a organização territorial do Brasil se caracterizava por um número elevado de sesmarias não regulamentadas ou abandonadas diante das dificuldades de manutenção. Tornou-se comum, então, a apropriação dessas terras por “posseiros”, e isso gerou um sistema sem regras de ocupação de terras, que ocorria de forma associada às cessões das sesmarias. Eram frequentes, pois, discussões judiciais sobre delimitações de propriedades, o que levou à gradativa redução das concessões, até que, em 1822, as sesmarias foram definitivamente extintas.

            A extinção das sesmarias ocorreu no mesmo momento em que aconteciam pressões internacionais para o fim do tráfico negreiro e da escravidão, prenunciando dificuldades para garantir a mão de obra para os trabalhos na lavoura. Foi nesse ambiente que se aprovou a Lei de Terras (Lei nº 601/1850), definindo regras para a propriedade da terra, de forma a dificultar o acesso aos trabalhadores que seriam libertos.

            A Lei tornou a compra a única forma de acesso à terra e essa compra era confirmada pelo título. Ou seja, não bastava estar produzindo a terra há gerações para considerar-se dono dessa terra, era necessário um documento para comprovar a propriedade. Como bem retrata o livro:

“Cada homem com desejo de poder havia avançado sobre um pedaço e os moradores antigos foram sendo expulsos. Outros trabalhadores que não tinham tanto tempo na terra estavam sendo dispensados. Os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiam da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem” Vieira Junior (2019, p. 22)

Torto Arado, como narrativa da história de vida das protagonistas Belonísia e Bibiana (Schøllhammer, 2021), percorre uma linha do tempo. E em vários momentos, essa linha se cruza com os tempos do Quadro 01, uma vez que ambos abordam um mesmo tema: as relações de um grupo social com a terra. Ou seja, o livro mostra o tipo de relação com a terra que tem a família das protagonistas e é justamente desta relação que advém os principais acontecimentos da trama.

Por sua vez, a possibilidade de construir uma “linha do tempo” do conceito de propriedade é indicativa da sua mutabilidade, ou transformação constante. Sendo a propriedade uma relação social, ela se transforma acompanhando as transformações da sociedade. E é essa mutabilidade da propriedade e da sociedade que podemos observar ao acompanhar a trajetória das protagonistas, pois, esta é também a trajetória do conceito de propriedade. Trata-se, de fato, de uma mesma linha; a linha do tempo da família de Belonísia e Bibiana coincide com a linha do tempo do conceito de propriedade no Brasil.

Seria possível, portanto, complementar os dados do Quadro 01, relativo à trajetória do conceito de propriedade no Brasil, transformando-o na Figura 01 a seguir, onde se sobrepõem os fatos históricos e a história de vida narrada no livro Torto Arado.

Figura 01. As duas linhas do tempo: da história e da narrativa

 

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Pereira (2021).

 

Em várias partes do livro é possível identificar essa sobreposição de trajetórias. Bibiana, após sair de casa em busca de outra vida, escreve: “...iriam guardar dinheiro para comprar um pedaço de terra. Queriam ser donos da própria terra” Vieira Junior (2019, p. 103). Aí está a literatura falando das relações sociais que conformam o conceito de propriedade dominante no século XX: a propriedade individual, à qual somente se tem acesso pela compra.

A história prossegue e, associadas a fatos familiares, vemos modificar-se a percepção quanto à propriedade da terra. Bibiana vai embora de Água Negra após uma gravidez inesperada, o que, para Severo, o companheiro, seria uma oportunidade de buscar outros caminhos. Segundo este personagem, os pais precisavam da ajuda para mudar de vida: “poderíamos, sim, comprar nossa própria terra e vir buscá-los. ...só assim conseguiríamos ter uma vida digna” Vieira Junior (2019, p.86). Repete-se, portanto, o conceito da compra como única possibilidade de acesso à terra e consequente “vida digna”.

Anos depois, Bibiana e Severo retornam à fazenda, mas, sem conseguir o dinheiro pretendido, repetem o costume local de levantar uma casa precária perto dos pais e trabalhar para os donos da fazenda. Mas, há uma diferença na percepção deles quanto à propriedade. Severo, tendo participado de grupos e discussões na cidade, passa a difundir na localidade um alerta sobre a precariedade do trabalho no campo e sobre os direitos dos trabalhadores. Como conta Bibiana, ele participava ativamente do sindicato e dos movimentos sociais e trazia para a localidade discussões sobre a precariedade do trabalho no campo.

O livro também conta que, antes mesmo de Severo e Bibiana retornarem à região e suas sequentes movimentações, os trabalhadores da região passaram a ser orientados pelos gerentes das fazendas a requerer os benefícios da “aposentadoria rural”. É assim incorporada à narrativa a criação do ProRural (Programa de Assistência ao Trabalhador Rural). Implantado pelo presidente Médici em 1971, com a finalidade de acalmar os ânimos da população campesina, o programa previa um pagamento mensal de 50% do maior salário-mínimo vigente no país (Garcia, 2009), para o homem ou arrimo de família que comprovasse três anos de atividade rural. O livro incorporou esse fato histórico, exemplificando como esse recurso mensal modificou o cotidiano das famílias, sem, entretanto, intervir no acesso à terra. De fato, em Água Negra permanecia a proibição de construções em alvenaria – era permitido construir somente “uma tapera de barro e taboa, que se desfizesse com o tempo... que essa morada nunca fosse um bem durável que atraísse a cobiça de herdeiros” Vieira Junior (2019, p. 183).

Nesse mesmo período das aposentadorias, Belonísia relata que, Zezé, o irmão mais novo começa a questionar o pai sobre a situação da família em relação à terra: “Por que não éramos donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão” Vieira Junior (2019, p.185).

Começa assim a aparecer no livro os mesmos elementos correspondentes à década de 1980 da linha do tempo (Figura 01). Segundo o narrador, os moradores mais antigos da região da fazenda Água Negra ainda viam a terra como propriedade alheia; daqueles que tinham os papéis. Mas, os nascidos e crescidos no lugar “começavam a se considerar mais donos da terra do que qualquer um daqueles que tinham seus nomes transcritos no documento” Vieira Junior (2019, p.187). Começavam a entender, na prática, o conceito de função social da terra. O mesmo conceito que, conforme demonstra Pereira (2021), foi incorporado à Constituição Federal de 1988, no inciso XXIII, do artigo 5º.

Os encontros, debates e movimentos nos quais Severo e Bibiana participam são aqueles que crescem no Brasil a partir da década de 70, reivindicando a reforma agrária e, por associação, a reforma urbana. Nos dois âmbitos, o tema central era fazer cumprir a função social da propriedade, ampliando as possibilidades de acesso à terra, seja ela para cultivo, no campo, ou para moradia, nas cidades.

Esta transcrição da realidade para a ficção aparece na narrativa da morte de Severo, assassinado nas lutas pela terra: “Severo morreu porque pelejava pela terra de seu povo... Queria apenas que reconhecessem o direito das famílias que estavam havia muito tempo naquele lugar, onde seus filhos e netos tinham nascido” Vieira Junior (2019, p.207).

São as discussões sobre o assassinato do marido de Bibiana que permitem novamente relacionar os momentos históricos e da narrativa literária. Ao final do livro, vários trechos ressaltam o sentido de pertencimento dos personagens e a força desse sentimento. O autor põe foco nos laços comunitários presentes no cotidiano dos personagens: “Aonde quer que fôssemos, encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade” Vieira Junior (2019, p. 178).  Essa mesma ênfase nos laços comunitários é trazida pelas palavras de Bibiana, quando, ao lembrar a fuga de Água Negra com Severo, diz que: “Sentiram vontade de retornar, à medida que foram acumulando informações sobre o que era pertencer a uma comunidade de moradores, talvez invisíveis para todo o resto, no coração de uma fazenda” Vieira Junior (2019, p.215).

Assim, embora a linha do tempo mostrada na Figura 01 faça referência à propriedade fundiária urbana e a potência da legitimação dos usos comunitários na cidade contemporânea, podemos fazer uma associação com o processo de reconhecimento do direito à terra e moradia no meio rural, para o qual caminham os personagens de Torto Arado.

Ao tratar da relação dos personagens com a terra, o livro reconstrói características da vida no campo no Brasil do século XX: a exploração do trabalhador rural; a fuga deste para a cidade em busca de melhores condições de vida; o eventual retorno sem os objetivos alcançados; a politização dos trabalhadores verificada nas décadas1980/1990; a repressão a esses movimentos.

Mas, assim como na linha do tempo, o livro anuncia mudanças positivas. A história vai indicando que os trabalhadores começam a reconhecer seus direitos, passando, inclusive, a reconstruir suas casas em alvenaria (o que indicaria a vontade de permanência). Salustiana pede aos filhos: “Queria uma casa com paredes caiadas e telhado de cerâmica” Vieira Junior (2019, p. 255). Diante disso, há reação dos proprietários: “talvez por entender que aquele movimento de desobediência ganhava contornos irrefreáveis, Salomão (o proprietário) procurou a Justiça, pedindo reintegração de posse de todas as áreas ocupadas da fazenda” Vieira Junior (2019, p. 255). Entretanto, numa visão otimista, que, mais uma vez aproxima o livro da linha do tempo, a narrativa informa que os moradores resistem, decidindo em conjunto, “que nenhuma família desampararia a mais próxima...Juntos resistiriam até o fim... agora o conflito era pelo direito de morar” Vieira Junior (2019, p.256).

A pesquisa aqui considerada, fundamentada na atualidade da ocupação das grandes cidades do terceiro mundo, identificou potencial possibilidade de construção de novos padrões de relações de propriedade que considerem o uso como condição. Embora seguindo outros caminhos, Torto Arado aponta para essa mesma possibilidade, identificando os fortes laços comunitários e o reconhecimento dos direitos de quem usa como elementos que podem levar à institucionalização de um novo tipo de relação com a terra na região de Água Negra. Como diz o livro: “... a existência de Água Negra já era um fato. Não eram mais invisíveis, nem mesmo poderiam ser ignorados” Vieira Junior (2019, p. 255).

Nos dois trabalhos podemos encontrar, portanto, indícios de transformação nas relações de propriedade, apontando para um futuro de possibilidades, mediante o reconhecimento do direito de construir em comum o uso da terra. E é nesse ponto que voltamos a recuperar Pesavento (2006, s.p), quando coloca que a literatura e a história, ambas narrativas “têm o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo”.

Nessa mesma direção, Vieira (2021, s.p.), ao fazer uma crítica de Torto Arado, coloca que o autor seguiria a tradição modernista de apostar na vida popular. Ou seja, a história do livro busca confirmar que “Só existe uma saída para os pobres, excluídos, quilombolas, índios, quando saem de cena os ricos, classe dominante, proprietários, que formaram a sociedade brasileira”. Para Vieira (2021), a narrativa do livro identifica um futuro positivo para Água Negra, ao finalizar relatando os movimentos que a população começa a fazer para defender seu direito à terra.

Os trabalhos aqui considerados parecem assim, ultrapassar o real do conceito de propriedade. Ficção/ realidade se aproximam, projetando/demonstrando sinais de um futuro utópico, construído a partir do compartilhamento de um território e de referências culturais.

 

 

4. Considerações Finais: Propriedade - um conceito a ser escrito

            Iniciamos este texto indicando a possibilidade de a literatura poder agregar elementos ao estudo da transformação do conceito de propriedade no Brasil. Ao analisar a obra Torto Arado, conseguimos identificar esses elementos, traduzidos na história dos personagens. É perfeitamente possível relacionar os tempos indicados na Figura 01 com os tempos e acontecimentos da vida das irmãs Bibiana e Belonísia. Os elementos identificados poderiam, ainda, ser complementados com referências bibliográficas específicas, que permitiriam relacionar outros contextos específicos da conjuntura do país em relação à questão da terra, tais como o movimento nacional pelas reformas agrária e urbana; os avanços na operacionalização da função social da propriedade e, na atualidade, à retomada dos conflitos fundiários.

            Este texto, entretanto, se propôs apenas a indicar possíveis caminhos para utilização da literatura como referência complementar às discussões sobre a questão do acesso à terra no Brasil. Sem dúvida, existem vários outros livros que poderiam ser explorados nessa discussão. A escolha por Torto Arado foi uma maneira de demonstrar essa possibilidade de uso da obra literária “como ferramenta complementar, capaz de agregar conhecimentos sobre a história urbana e cultural” (Ultramari e Jazar, 2021, p.13). Isto é possível porque a obra literária, e em especial Torto Arado, trata de uma realidade palpável, trazida pelo autor a partir de sua vivência pessoal. Ou, como coloca Pesavento (2007, p. 18): “As tramas são imaginadas, os personagens são fictícios, mas o universo do social e a sensibilidade de uma época se revelam diante do leitor de maneira verossímil, convincente. Uma explicação da realidade, realista ou cifrada, realiza-se em comunhão entre o mundo da escrita e o da leitura”. No caso específico da propriedade fundiária, essa associação é ainda facilitada porque o conceito de propriedade e de direito de propriedade são relações sociais juridificadas (Rao, 2018; Korah et al., 2020; Pereira, 2021) e, como colocam Nascimento e Maria (2019, p.419), “o Direito se faz notar em cada obra literária, servindo de sustento para a compreensão da progressão temporal das normas jurídicas e das sociedades como receptoras destas”.

            Para finalizar, consideramos que este texto contribui para a discussão sobre potencialidades e limites do uso da literatura como fonte para compreensão da cidade contemporânea e seu futuro Além disso, literatura é ficção, mas também pode ser utopia. Como tal, anuncia um porvir que é possibilidade a ser construída. Especialmente no caso do acesso à terra, não deixa de ser um alento identificar na ficção e no estudo acadêmico o reconhecimento do direito de uso como conceito chave para construção de uma utopia fundiária.

 

5. Referências

Castro, A. C. V. (2018). Carolina e João na cidade: o lugar dos pobres em São Paulo (1950-1970). XV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018.14p.  Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/xvshcu/82771-carolina-e-joao-na-cidade--o-lugar-dos-pobres-em-sao-paulo-(1950-1970)/ Acesso junho 2021

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Garcia, N. R. (2009). Prorural: a criação da previdência social rural no Governo Médici. Dia-Logos: Revista dos Alunos de Pós-Graduação em História, 3.

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DECLARATION OF CONTRIBUTIONS TO THE ARTICLE - CRediT

 

ROLE

GPereira

Conceptualization – Ideas; formulation or evolution of overarching research goals and aims.

X

Data curation – Management activities to annotate (produce metadata), scrub data and maintain research data (including software code, where it is necessary for interpreting the data itself) for initial use and later re-use.

-

Formal analysis – Application of statistical, mathematical, computational, or other formal techniques to analyze or synthesize study data.

X

Funding acquisition ​- Acquisition of the financial support for the project leading to this publication.

-

Investigation – ​Conducting a research and investigation process, specifically performing the experiments, or data/evidence collection.

X

Methodology – Development or design of methodology; creation of models.

X

Project administration – Management and coordination responsibility for the research activity planning and execution.

X

Resources – Provision of study materials, reagents, materials, patients, laboratory samples, animals, instrumentation, computing resources, or other analysis tools.

-

Software – Programming, software development; designing computer programs; implementation of the computer code and supporting algorithms; testing of existing code components.

-

Supervision – Oversight and leadership responsibility for the research activity planning and execution, including mentorship external to the core team.

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Validation – Verification, whether as a part of the activity or separate, of the overall replication/reproducibility of results/experiments and other research outputs.

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Visualization – Preparation, creation and/or presentation of the published work, specifically visualization/data presentation.

X

Writing – original draft – ​Preparation, creation and/or presentation of the published work, specifically writing the initial draft (including substantive translation).

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Writing – review & editing – Preparation, creation and/or presentation of the published work by those from the original research group, specifically critical review, commentary or revision – including pre- or post-publication stages.

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